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No limite

  Podemos desiludir-nos quantas vezes com alguém? Qual é o limite a partir do qual a travessia do gosto ao desgosto toma a forma incontornável de um naufrágio?  Disse-me ela: soube naquele dia que tinha chegado a esse lugar sem retorno, onde do outro já nada esperas. A sua luta era que o ódio não crescesse, pois a rejeição essa tinha tomado definitivamente o lugar do coração.
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De uma cicatriz tudo podemos esperar

  Diz-me ela que já passou o tempo da ferida em carne viva. E ainda assim uma ferida tem sempre uma cicatriz volátil, não é possível saber quando de repente se abre e jorra sangue. Assim aconteceu. Tinham saído por iniciativa dela a uma loja dessas onde se compram coisas para o lar, apenas como amigos. Estranhou-lhe o interesse por lençóis, toalhas, até pratos...e os candeeiros novos que trouxe para substituir uns há muito pendentes, desmanchados. Pediu-lhe ajuda para a escolha. Disse-me ela que pouco depois lhe disse que ia receber uma amiga para passar o fim de semana. E do sangue a jorrar da cicatriz, primeiro apenas um pingo, como se nada fosse, mas depois gradualmente, a consciência da injustiça cometida durante anos. Não era sequer ciúme, mas as muitas discussões sobre a casa, o modo como a casa agonizava de mal cuidada. E o balde do lixo com tampa, anos a pedi-lo. Já não eram gotas, era mais.  Levantou-se para ir passar água fria na ferida, deixou a água correr muito tempo, depo
Tenho finalmente coragem para lhe perguntar: e o sexo?! Pelo modo como fecha os olhos e se cala, imagino que a pergunta lhe dói. Diz-me que o sexo era um exercício que ele parecia fazer consigo próprio, como um desportista que treina para chegar a uma meta e tornava-se desolador pois ficava cada vez mais aquém dela. Sentia-se quase um instrumento, a trave, as paralelas, ou apenas o chão, ela era apenas o suporte necessário. Chegou a um ponto que ela já não conseguia mais e foi rejeitando pouco a pouco qualquer iniciativa, apenas deixava que ele encostasse o corpo ao seu. Nunca falaram. Quando ela o fez já não valia a pena. Percebeu com clareza que voltar ao ponto de partida não era coisa que ele quisesse, era muito além do esforço de que seria capaz. *FV*
  Pergunto-lhe olha todos os dias para dentro. Diz-me que sim. Diz-me que ainda pensa nele todos os dias, mas que às vezes já não o faz sempre ao acordar, como antes. Pergunto-lhe se acredita no esquecimento, esse pó fininho que cobre o calendário. Diz que não faz esforço pois acabamos por recordar se queremos esquecer e só esquecemos quando já não fazemos esse esforço. E ele, pergunto-lhe por ele. Diz-me que hoje tinha uma voz distante, quase metálica. Entristece quando sente esse frio pois recorda-lhe o modo como lentamente, todos os dias mais um pouco, a foi deixando de amar. Ao mesmo tempo que tinha consciência disso, julgava que era impossível tal acontecer. E depois aconteceu. *FV*
  Pergunto-lhe como foi, como tem sido. E ela diz-me que há momentos em que a dor no peito se agudiza, como aquele em que ele usou apenas uma palavra para definir o fim de um amor tão longo, tantas coisas passadas, partilhadas, algumas de uma dor inimaginável. Uma única palavra, tão natural, trivial e ordeira. Quis dizer que tinha sede, bebeu água, ficou saciado, e agora a sede terminara. Parece-lhe distante, amortecido, frio. Não o terá sempre sido? Apesar de tudo acha que não, consegue lembrar-se de alguns outros momentos. No entanto, no fundo, agradece-lhe pela frieza com que agora a trata, assim como pelo olhar que deitou na sua presença, a uma outra mulher, sabe que por aí se abre a ferida mas também é por ela que se afastará, que irá para muito longe, onde não poderá mais doer-lhe. *FV*
Pergunto-lhe pelas memórias dele impregnadas nas coisas. Diz-me que no quotidiano não, é como se isso se tivesse esvaziado aos poucos, há meia dúzia de coisas na casa com a inequívoca marca dele. Mesmo a cama dela onde tinham dormido tantas e tantas vezes, dizia-lhe agora que tinham sido muito mais as vezes em que lá dormira sozinha. Por insistência, buscava memórias dos corpos e do amor, na tentativa de lembrar como tinham sido, mas naturalmente isso não lhe ocorria. Sim, claro que houve momentos em que ele olhou para ela e disse que a amava, não consegue é recordar-se da última vez que o fez. Nos outros lugares sim, naqueles pelos quais tinham os dois passado. A cozinha daquele lugar de férias ainda cheirava à massa de peixe que ele tinha feito, a mesa os risos dos amigos que a haviam saboreado e elogiado. Esses lugares tinham centelhas de felicidade e doía a sua ausência. Mas bastava-lhe um momento para se interporem as sombras, mesmo nesses lugares. E ela ficava com pena de não ter
  E como está ele, pergunto-lhe. Sei que se preocupa, disse-me que ninguém passa pela nossa vida e vai para lado nenhum de um dia para o outro. Diz-me que todos os dias pensa invariavelmente nele, tanto ao acordar, como ao deitar. Mas que lhe dói senti-lo por vezes agressivo, como se editasse e reeditasse nela o desamor dos últimos tempos, a falta de admiração e consideração pelas escolhas dela, pelos caminhos, pelo que das mãos dela saía.  Fecha os olhos e lembra-se de como nunca mais lhe falou no seu sorriso, de tal modo que ela pensa que se calhar deixou de sorrir junto dele, talvez tenha sido isso. *FV*