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Showing posts from August, 2021
Pergunto-lhe pelas memórias dele impregnadas nas coisas. Diz-me que no quotidiano não, é como se isso se tivesse esvaziado aos poucos, há meia dúzia de coisas na casa com a inequívoca marca dele. Mesmo a cama dela onde tinham dormido tantas e tantas vezes, dizia-lhe agora que tinham sido muito mais as vezes em que lá dormira sozinha. Por insistência, buscava memórias dos corpos e do amor, na tentativa de lembrar como tinham sido, mas naturalmente isso não lhe ocorria. Sim, claro que houve momentos em que ele olhou para ela e disse que a amava, não consegue é recordar-se da última vez que o fez. Nos outros lugares sim, naqueles pelos quais tinham os dois passado. A cozinha daquele lugar de férias ainda cheirava à massa de peixe que ele tinha feito, a mesa os risos dos amigos que a haviam saboreado e elogiado. Esses lugares tinham centelhas de felicidade e doía a sua ausência. Mas bastava-lhe um momento para se interporem as sombras, mesmo nesses lugares. E ela ficava com pena de não ter
  E como está ele, pergunto-lhe. Sei que se preocupa, disse-me que ninguém passa pela nossa vida e vai para lado nenhum de um dia para o outro. Diz-me que todos os dias pensa invariavelmente nele, tanto ao acordar, como ao deitar. Mas que lhe dói senti-lo por vezes agressivo, como se editasse e reeditasse nela o desamor dos últimos tempos, a falta de admiração e consideração pelas escolhas dela, pelos caminhos, pelo que das mãos dela saía.  Fecha os olhos e lembra-se de como nunca mais lhe falou no seu sorriso, de tal modo que ela pensa que se calhar deixou de sorrir junto dele, talvez tenha sido isso. *FV*
  Pergunto-lhe se ainda sonha com o amor, um novo amor. Diz-me que lembra-se vagamente desse estremecimento. Diz-me que se julga praticamente incapaz de o voltar a sentir. Falo-lhe daqueles dois que vimos e que conhecíamos há tanto tempo, amigos de amigos, nunca antes namorados. Pergunto-lhe se achou que os olhos azuis dela estavam agora com mais luz. Diz-me que os dela não sabe, iluminaram-se ao longo dos anos muitas e muitas vezes mas era brilho que não permanecia. Já a ele, nunca o tinha visto com o rosto encostado no ombro de alguém, como o tinha naquele dia, quase um menino, um sorriso que parecia ter perdido muitos anos, de tão entontecido. Pergunto-lhe o que sente quando vê assim o amor tomar corpo e rosto em pessoas da nossa idade. Diz-me que ainda não sente nada, constata apenas, como quem lê uma notícia. *FV*
  Diz-me ela que gostava de encontrar o lugar exacto em que começou o desamor, o dia, a hora, o minuto. Será que foi ao mesmo tempo, cada um à vez, mais um pouco, mais um dia? Diz-me que localiza no mapa com clareza os momentos em que o sentiu. Fala-me de um corpo voltado de lado, nas suas costas, no momento do amor. Fala-me de raramente lhe ver o rosto, de precisar de o fazer, de não se sentir pessoa mas apenas corpo.  Digo-lhe que afaste essa dor de si. Peço-lhe, com as mãos entre as minhas, que tente focar-se na luz, nos momentos em que a mão dele adormeceu na mão dela. E ela, com lágrimas interiores, esconde o rosto entre as mãos e diz que nem sempre o consegue, que esta noite tem uma pele marcada por outros dedos, aqueles em que essa mão não apertou a dela. *FV*
  O corpo foi o primeiro a zangar-se, retraiu-se e escondeu-se a um ponto provavelmente impossível de resgatar. Há quanto tempo evitava os espelhos o mais que podia e praticava essa arte de congelar as lágrimas, não sabia exactamente dizer quanto começara. E só o seu sussurro tão privado quanto doloroso permitiu soltar uma primeira palavra e, sem dúvida, era solidão. Um susto pequenino ao soletrá-la, um estremecimento leve. *FV*